(Acasos #5) Todo mundo ama o carnaval. Até quem não ama.
Mas é carnaval, meu amor! Vamos botar o bloco na rua, brincar, botar pra gemer, gingar para dar e vender. Amanhã tudo volta ao normal, seja você quem for.
Uma daquelas polêmicas da internet se instaurou recentemente criticando os paulistas por chamarem bloco de carnaval de bloquinho. Descobri por causa dessa treta cibernética que só aqui nas terras do trabalho árduo se diz bloquinho e que nenhuma outra região entende porque raios falamos assim. Parece que o certo é bloco. E ponto final.
Alguns posts pareciam apenas zoeira, mas vi alguns realmente muito sérios explicando que bloco não é bagunça, é ato histórico, político, precisa ser respeitado e coisa e tal e tal e coisa.
Achei curiosíssimo. Primeiro porque nunca imaginei que dizer bloquinho pudesse ser ofensivo. Eu também não sei bem porque falamos assim. Tenho a impressão que o diminutivo foi adotado como algo carinhoso, talvez porque os meus blocos preferidos são os pequenininhos mesmo. Talvez seja pelo mesmo motivo que sem nenhuma intimidade com as pessoas, assim que as conhecemos trocamos seus nomes inteiros por uma sílaba.
Paulista é bicho estranho mesmo. Só que mesmo com essa constatação, essa coisa ai de bloco ou bloquinho me diz pouco ou quase nada, até porque hoje em dia tem até auto intituladas blocAs, os blocos só de mulheres, e aí nem sei mais onde essa discussão vai parar!
Da mesma forma, de uns anos para cá começaram a fazer questão de que acertássemos quando o bloco é composto de uma bateria, banda, fanfarra, orquestra ou qualquer outra formação específica. Eu chamo tudo de "os músicos", com medo de errar.
E a gente precisa saber tudo isso para amar o carnaval? Não precisa.
O Carnaval é um momento mágico, difícil de traduzir em palavras. É um tempo em que a gente tem autorização para transbordar.
São poucos dias em que podemos realmente exceder, não necessariamente em álcool ou sexo ou loucuras como muita gente pensa e outro tanto de gente faz, mas podemos abrir as comportas das águas represadas dentro de nós e deixar sobrar.
No carnaval estão liberadas as amarras dos nossos papéis sociais para, temporariamente, sermos quem quisermos. Se você quer sensualizar, pode. Se você quer se fantasiar de elefante como sempre sonhou desde criança, pode. Se você quer assustar seus porteiros saindo às 8hs da manhã de elefante sensual, porque afinal agora você é adulto e os sonhos são outros, pode também.
Se você tem 70 anos e sai por ai toda purpurinada, não será a velha louca, se seu filho ta comendo espuminha, não será o pai desleixado. Ta com pouca roupa? Nada mais que a obrigação. Meia arrastão que prende em tudo? Sucesso total.
Somos apenas foliões de licença da realidade, dedicados por uns poucos momentos a simplesmente sermos uma outra coisa qualquer, seja você quem for, seja o que Deus quiser.
Muitos acham absurda essa alienação voluntária e passageira. Tanta gente passando fome, tanto sofrimento no mundo, eles dizem como se passassem todos os segundos de suas existências tentando acabar com as dores do planeta e não rolando as telas das redes sociais na mais completa desconexão.
Poucas coisas são tão chatas quanto gente que não aguenta essa tal liberdade. Presos nos seus próprios papéis de bedéis da sociedade, espalhando amargura e notícias de crimes.
Ah, mas é muito excesso, outros dizem. É verdade. Como tudo na vida, o carnaval tem seu lado ruim, como os excessos de: muvucas, lixo, fedores, bagunças, bêbados equilibristas e desequilibrados, calor (essa reclamação pode ser só minha, mas ainda assim…).
Eu até entendo quem diz que não gosta do carnaval. Quem prefere fugir da folia, descansar, viajar ou simplesmente se trancar em casa. Eu mesma nem sempre estou no clima e não raro me pergunto o que estou fazendo ali no meio do bloco, me estressando com coisas pequenas como bebida que cai no pé.
Mas até quem odeia carnaval, ama carnaval.
E digo isso porque muito mais do que toda a fantasia e efervescência que ele evoca, o carnaval é música.
Em 2018 voltamos do nosso período sabático na véspera do carnaval. Depois de quase 18 meses viajando, nem sabíamos direito o que estávamos fazendo aqui. Com exceção das pessoas, eu não sentia falta de nada do Brasil. Para mim, a vida aqui ou em qualquer lugar do mundo era a mesma, não tinha nenhuma sensação especial de pertencimento ou de carinho pelo meu país.
Decidimos ir à um bloco de carnaval que frequentamos desde os tempos de faculdade, saudosos de uma ligação com o que fomos e que mesmo que quiséssemos nunca mais voltaríamos a ser depois de tudo o que vimos e vivemos nesses meses viajando pelo mundo.
Enquanto o bloco descia uma ladeira, me peguei pensando que doidera que era aquilo. As pessoas pareciam planetas de diferentes galáxias espalhadas no universo do bloco. Giravam em torno de si mesmas, sem tomarem conhecimento de ninguém à volta. Alguns planetas se reconheciam parte da mesma galáxia e viviam em seus grupinhos, mas de verdade, aquele mar de gente nada mais era que um monte de galáxias incomunicáveis e sem conhecimento das outras, cada um focado apenas na sua própria existência. Me senti tão só!
De repente começou a tocar "Ô Abre Alas" e como se alguém tivesse agitado uma varinha mágica e parado o tempo, todas aqueles planetinhas pararam de girar aleatoriamente e, cabeças erguidas, convergiram para a mesma direção, cantando em alto e bom som "que eu quero passaaaar".
Me choquei em como essa música, composta por Chiquinha Gonzaga há mais de 100 anos, ainda é capaz de tocar a alma das pessoas a ponto de tirá-las de seus transes pessoais e trazê-las para o presente em comum. E conclui que não é tanto a letra, que inclusive todo mundo canta errado, é a melodia, a memória afetiva que atravessa gerações e continua vibrando.
Uma pessoa pode odiar carnaval, ou não se divertir com marchinhas, não importa. Basta ouvir aqueles acordes ó lá lá lá laa lá lá lá lááá e a música brota no peito, vinda do fundo, do passado.
Também tem muita gente não sabe qual é o frevo 1 do Clube Vassourinhas nem nunca pisou em Pernambuco, mas basta ouvir um pã rãn rãn rãn rãn rãn pã rãn pã rãn rãn para saber que é frevo, que é carnaval, que é Brasil.
Também não precisa ter gasto milhares de salários em abadás ou pulado na pipoca em Salvador para soltar o vozeirão em "ae ae ae ae ê ê ê ê oooooo". Eu reclamo do calor, mas eu te espero no verão, carnaval!
E você, meu caro odiador de carnavais, tenho certeza que se arrepia quando está por ai nas suas fugas e ouve aquele tu tu tu tuuiuiuu da cuíca junto de um tatatararatata do tamborim. Sem que você queira, esses sons, NOSSOS sons, te tocam porque estão gravados na nossa essência, no DNA, sei lá. Duvido você não mandar um "na maior, fe-li-ci-da-de" ao ouvir um"Explode, co-ra-ção".
No fundo, você também ama o carnaval um pouquinho. Pode não amar a folia da rua, pode não gostar de todos os ritmos, de todas as músicas, mas o carnaval aceita tantas coisas, tantas versões, todas nossas e só nossas, que é impossível que você não ame um pouquinho. Ama sim, mesmo que não saiba.
Fiquei muito emocionada naquele dia em que tive a consciência da força que é a música no carnaval, a ponto de esconder umas lagriminhas deslocadas. Entendi que, afinal, é isso ser brasileira. Se reconhecer como parte de algo muito maior que sua órbita particular e que não vem de uma representação, uma exigência do patriotismo para manter a coesão, um dever cívico. É coisa do coração.
Carnaval é pertencer a um espaço-tempo-lugar único. Se quiser voltar lá para a discussão da história dos blocos, vai chegar a conclusão de que é sempre sobre união em torno de um núcleo social de um lugar, com seus gritos e glórias.
É um compartilhamento entre pessoas, uma convocação a um pensar diferente, a encantar, girar, pular, requebrar, espantar, sorrir. É um pacto coletivo pelo alívio dos pesos cotidianos e pela liberdade irrestrita, mesmo que temporária.
Uma vez um amigo gringo que passou um carnaval conosco falou que não entendia a graça de andar por ai cantando "lalala o amor, lelele felicccidadje", que segundo ele era basicamente tudo que a gente fazia. E é sobre amor e felicidade também, gringo querido, mas não tem como você alcançar o significado profundo de tudo isso sem ter nascido aqui, sem ter carnaval correndo na veia.
Reconhecer lá dentro de si nossos sons e ritmos e cantar junto com uma multidão a plenos pulmões, com a alegria jorrando da boca e o corpo cheio de brilho de suor e glitter é intraduzível para qualquer idioma que não seja o português do Brasil.
Nessa altura, você já deve ter notado que eu gosto de bloco. E gosto também de bloquinho e de bloca. E de bateria, orquestra, fanfarra, cordel, confraria, perna de pau, pluma, paetê, sunga, neon, fantasia tosca de papelão, água jogada da janela para aplacar o calor.
Gosto de tudo que vai pra rua mantendo essa nossa ancestralidade viva. Mas gosto ainda mais porque é ocupando a rua que contamos pras cidades que elas nos pertencem. À nós, brasileiros. Que se no resto dos dias elas estão para os carros fechados, os perigos, as separações, os cinzas, as fumaças… no carnaval elas são nossas e vão receber batuques, confetes e muito amor e felicidade. Lalala e lelele até cansar.
Eu não consigo ver uma única forma melhor de pertencer, de ser brasileira, de amar meu país, do que no êxtase caótico, multicolorido e livre do carnaval.
E por isso estarei pelas ruas. Cantando desafinada em alto e bom som o canto da cidade, alalaô, de bar em bar, sassaricando, prefixo do verão, ta-hí, bandeira branca, você me tira do sério, alguém me avisou, jardineira, faraó divindade do egito, exaltação à mangueira, beija-flor, vou festejar, peguei um ita no norte, não deixe o samba morrer etc etc etc.
Quem quiser, vem. Mas tem que saber pelo menos Tieta eta eta etaaaa.
Nos vemos no mês que vem!
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