(Acasos #1): Cães, Tambores e Dragões - A Vida Pulsante das Cidades
Medos, escravidão, luta abolicionista, virações, nossa história.
Uma imagem de São Luís não sai da minha cabeça. Aconteceu logo que cheguei e olhei pela primeira vez pela janela do meu quarto num casarão com mais de cem anos. No bafo quente do começo da tarde, uma menina dava banho de mangueira num vira-lata caramelo. O cão parecia viver na rua, mas a garota morava no casarão em frente ao meu, de onde uma senhora observava a dupla na calçada pela janela verde.
Eu não sabia quando marquei a ida para São Luis, mas era feriado naquele dia de São Pedro e a cidade estava suspensa. Desde que saí do aeroporto o taxista veio me apresentando à sua terra e explicando que não havia nada aberto nem ninguém nas ruas, porque estavam todos na festa da igreja. Disse que a festa era legal, mas que o pessoal bebia demais. Que na verdade ele já tinha sido um grande bêbado e que agora que tinha saído dessa, preferia trabalhar.
Sozinha, eu olhava e ouvia com aquela sensação de estranhamento e excitação que nos atinge quando chegamos num lugar desconhecido e tudo parece muito maravilhoso e perigoso ao mesmo tempo.
Paramos ao lado de uma pracinha com um bode triste amarrado à uma árvore e o motorista me avisou para guardá-la como referência caso pegasse outro transporte, porque o trecho da Rua do Giz onde eu me hospedaria era fechado para carros. Fez questão de ir comigo até o hotel, me deixando com um sentimento ruim de que aquele lugar deserto não era seguro e botando um peso a mais no meu coração já apertado por muitas informações ruins que recebi quando decidi ir para São Luis.
Enquanto subia as escadas de madeira do hotel mais ou menos bem conservado, fui sentindo os cheiros estranhos que subiam pelas paredes meio tortas e pensando o tanto de coisa que já devia ter acontecido naquele casarão desde os tempos coloniais.
Abri as longas portas de madeira do meu quarto e apesar das modernidades me dizerem que era 2022, continuei no passado do piso de madeira, da cama de dossel e, acima de tudo, das maravilhosas janelonas do chão ao teto com bandeiras em arco e enfeitadas por cortinas brancas.
Eu queria sair e conhecer a cidade, mas me dei um tempo na segurança do quarto. Sai pelas janelonas e fiquei ali na sacada tentando assimilar esses sentimentos que vieram comigo do aeroporto até o quarto. Começo a temer que esses dias na cidade sejam desagradáveis quando vejo a menina sair da casa à frente puxando uma mangueira e começando o banho no cão. Fico presa assistindo ao cotidiano.
Tudo naquela cena me lembrava seca. O cachorro era alegre e peludinho, mas do tamanho de quem passa fome. A menina era aquelas crianças-anciãs, mirrada e simplória, mas com cara de quem já sabia muito. Ao redor, uma rua vazia de tudo o mais.
Por outro lado, eu não podia deixar de ver também aquela água abundante que refrescava criança, cachorro e rua. Nem podia deixar de ver os olhos gentis da mulher que da janela em frente à minha cuidava a menina, nem os olhos brincalhões da menina ao esfregar as orelhinhas do cão e os dele ao ganhar o afago.
Abundou água em mim também, ao constatar a potência da vida, que pulsa em todo lugar e me impulsiona sempre.
Eu não tinha planejado nada dessa viagem, que decidi fazer do dia para a noite e parecia que eu não sabia mais viajar depois da pandemia. Estava com medo. Mas aos poucos ia entendendo e me libertando.
Quando saí do transe e olhei para os lados da rua novamente, vi que a cidade também despertava. Pessoas surgiram aqui e ali caminhando devagar de um lado e de outro, um reggae saía baixinho de um bar enquanto as portas subiam e uma loja tinha colocado garrafinhas de água numa banca na calçada, como que dizendo que eu também teria refrescos.
Me senti melhor e sei que é em parte porque o imperfeito sempre me encantou mais. Eu não preciso estar no lugar mais arrumado e organizado e pasteurizado. Gosto de estar onde a vida é real e corre livre das ilusões da perfeição.
Me disseram que São Luis era perigosa, feia. Que o centro histórico era sujo, estava em ruínas, era fedido. Que as hospedagens por ali eram ruins, que o ambiente era barulhento, que era melhor não sair à noite. E foi no centro que eu quis ficar.
Se por uns momentos me senti deslocada, passou quando aquele cão me contou o que era São Luis: uma cidade caleidoscópio de vidas. Com suas securas, asperezas e sujeiras, mas também com suas belezas delicadas, suas pessoas que lavam e cuidam.
O centro histórico tem seus problemas, é verdade. Mas estão longe do quadro de fim de mundo pintado por quem prefere não ver o que incomoda.
É difícil não notar ali as disparidades entre os casarões restaurados por grandes empresas e os casarões mantidos de pé pela força de vontade de seus moradores comuns, ou entre os turistas que assistem perdidos o tambor de crioula e quem gira e canta com a força das suas raízes que cruzam oceano.
Também é ali que sentimos - se quisermos - a história de São Luis, do Maranhão, do Brasil.
Se os casarões e as ruas não estão perfeitos para agradar aos nossos olhos, narizes ou fotos, isso também é um pequeno sinal de que ali ainda há abundância de vida. Que não foram todos exilados para dar lugar à reformas que nunca serão usufruídas por eles e sim por outros que vem de longe, de um lugar onde tudo tem de ser tão perfeito e tão limpo que apague inclusive a vida vivida até então.
Com o peito mais tranquilo e cheio desse carinho novo por São Luís, resolvi descer e comer algo nas calçadas do bar da esquina. Não sei se era aquela luz do sol de fim de tarde ou o papel reluzente das bandeirinhas de São João ou minha compreensão de que o que amo numa cidade é sua própria vibração, mas tudo pareceu mais lindo e mais brilhante a cada minuto.
E então, duas mulheres que subiam da praia em direção à Rua do Giz com a "viração" que vinha do mar pararam um pouco depois de mim e uma diz: "andar por aqui é como estar nas páginas daquele livro, Os Tambores de São Luis" e a outra responde que sim, que "até ouvia o tumtum da Casa das Minas˜.
Uma eletricidade me percorreu. Me virei imediatamente para ver quem me deixava essa dica tão preciosa, mas elas já tinham seguido em frente, rápido demais, deixando claro que eram apenas mensageiras.
Um daqueles Acasos maravilhosos que agora me fazem mensageira pra você.
Os Tambores de São Luis de José Montello
Guardei o nome na memória para buscar depois. O livro de Josué Montello está esgotadíssimo, mas achei num sebo e mergulhei em suas letras miúdas.
O enredo segue a vida do negro Damião e começa em 1915 quando, aos 90 anos, ele caminha por São Luis numa noite e começa a navegar por suas lembranças desde o dia em que o pai foge com a família e funda um quilombo até a proclamação da República, ou seja, por quase um século de muitos acontecimentos marcantes na história do Maranhão.
Acompanhamos Damião na recaptura, na crueldade gratuita dos senhores, na ida para São Luis, na sua relação com a igreja e com o vodum da Casa das Minas, na alforria, nas inúmeras dificuldades do negro livre e também nas rasteiras e ajudas do destino.
Graças àquelas mulheres conheci um pouco mais de São Luis, de aspectos da escravidão, das lendas maranhenses e, num caminho inverso ao delas, do meu sofá em São Paulo me senti andando de novo pelas ruas de lindos nomes do centro da cidade, sempre acompanhada dos tumtums dos tambores que agora pareciam tocar em mim.
É um romance, mas podia ser um livro de história (da cidade, do estado, do país. Nossa). Uma história que precisamos revisitar para conseguirmos mudar os horríveis padrões que repetimos ainda hoje.
Estão no texto a transformação do negro num ser não humano, o adestramento através da tortura, os casarões cuja degradação é criticada hoje apenas pela estética, sem lembrarmos de suas origens escusas no passado senhoril. E também estão lá figuras reais como Donana Jansen e os penicos do Comendador Meireles.
Mas Montello não faz apenas um relato de fatos históricos e de estórias da cidade dentro do enredo. Complexas construções psíquicas dos personagens nos levam à reflexões muito mais profundas sobre o quanto a escravidão moldou grupos, cidades, o país e nossa sociedade.
Damião amadurece ao longo da trama e vai descobrindo seu papel na luta abolicionista. Vivemos com ele suas batalhas internas e externas, reforçadas pelo posicionamento de outros personagens criados para contrapor e nos ajudar a entender melhor como a consciência, tanto individual quanto coletiva, não é óbvia e precisa ser cultivada, sendo inevitáveis ajustes pelo caminho.
Ainda vemos, como se lá estivéssemos, a grande sacanagem que foi a abolição ao simplesmente abandonar os negros à própria sorte.
E é Damião quem nos faz entender a relação entre tudo isso e os relatos da São Luis "perigosa, suja e fedida" de hoje nesta passagem em que ele vai pedir ajuda ao Presidente da Província:
"Estou vendo a hora em que os negros começarão a saquear as casas, impelidos pela fome. Daqui a pouco vai começar a estação das chuvas, e quase todos eles dormem nas ruas, sem ter onde se abrigar. Não sei como vai ser. É preciso que sejam tomadas providências rápidas, por parte do próprio Governo; mas não as que tem sido dadas até agora, como o recolhimento dos negros ao São João, à Cadeia Pública e ao Hospital do Lira. É preciso dar a esses nossos patrícios, que são tão brasileiros quanto os outros, uma ocupação qualquer. Muitos deles, passado o entusiasmo da abolição, voltaram, de cabeça baixa, à casa de seus senhores. Mas outros, tomados de brio, com a consciência de que são homens livres, não quiseram voltar. Vagam pela Praia Grande, dormindo na orla do cais ou no interior dos barcos que ali pernoitam, e vivem disputando entre si, por ínfimo preço, todo e qualquer trabalho. Outros já estão juntando lixo na rua, para comer os restos ali deixados. Não há ponto na cidade em que eles não estejam, seminus, maltrapilhos, cheirando mal, de olhos encovados, e já na iminência de cometerem desatinos. Não estou a par das medidas que o governo já tomou para ampará-los. Mas tenho certeza de que Vossa Excelência, como um bom presidente que tem sido, está atento ao problema, que não é policial, como muitos pensam - é social. Para a abolição do cativeiro, só se pensou na festa - não se pensou no dia seguinte."
O diálogo prossegue com a avaliação de que nada foi feito durante o processo de abolição para que os escravos passassem a trabalhadores, o que evitaria a "ruína dos negócios” e criaria meios de construção de uma sociedade mais equilibrada.
Um texto escrito há 50 anos e que não deveria mais ser tão atual. Só que nada foi feito em reparação desde então. Ao contrário, há muitos que ainda insistem no isolamento de negros e pobres, sem entenderem que isso apenas aprisiona a si mesmos nas grades de proteção.
O livro é maravilhoso e vale a sua leitura, ainda que sob o olhar de 2022 alguns pontos nos pareçam meio deslocados.
Mas ainda que você nunca o leia, há duas informações interessantíssimas inseridas no enredo que você merece conhecer também.
O Crime da Baronesa do Grajaú e a Luta do Dragão do Mar
A primeira é a história do crime da Baronesa do Grajaú, Dona Anna Rosa Vianna Ribeiro, a primeira senhora branca a parar no banco dos réus por matar um escravo!
A mulher torturou e matou um menino de cerca de 8 anos em 1876. Os detalhes são tenebrosos e ela tentou enterrar o corpo escondido, mas foi descoberta e até passou uns dias na cadeia.
Infelizmente foi só. Foi inocentada no processo e o promotor que a acusou foi demitido por seu marido, que foi nomeado Presidente da Província em seguida. De qualquer forma, é um importante marco histórico.
Montello contou que buscava detalhes do crime, cujos documentos tinham se perdido no tempo. Num acaso, foi convidado para um jantar com Sarney e aproveitou para perguntar se este podia ajudá-lo a encontrar os documentos. Sarney pediu licença e voltou com O PROCESSO ORIGINAL que ele tinha (segundo o próprio) resgatado de uma pilha de processos que seriam incinerados, quando era jovem e trabalhou no Tribunal.
Atualmente o processo está no Memorial do Ministério Público do Maranhão e foi transcrito num livro, que está digitalizado aqui.
O Maranhão tem uma história escravagista das mais obscuras do Brasil, mas também, e talvez até mesmo por isso, tem momentos abolicionistas lindos, como esse processo, e também como o livro "Úrsula" o primeiro romance escrito no Brasil, em 1859, por uma mulher do interior do Maranhão com ascendência negra, a Maria Firmino dos Reis.
Para não me perder falando de Úrsula, digo apenas que nele Maria Firmino não apenas inovou no estilo (romance) como traz uma história com ponto de vista do negro que foi uma tremenda mudança narrativa! Sua memória vem sendo resgatada e merece o maior reconhecimento. Eu me emocionei ao vê-la como homenageada da FLIP 2022. Se quiser saber mais de Maria Firmino e Úrsula, leia aqui nesse post do Expressinha.
Mas voltando à segunda informação interessante. No livro, os escravos maranhenses fogem constantemente para o Ceará e fiquei intrigada sobre o por quê, afinal lá também existia escravidão, certo?
Mas não é que o Ceará era todo moderninho e por ali o movimento abolicionista não apenas era intenso como a própria abolição foi declarada muito à frente do resto do Brasil?!
A abolição da escravidão na Província do Ceará aconteceu em março de 1884, quatro anos antes da Princesa Isabel bancar a salvadora, e foi fruto de lutas históricas que sofreram apagamento.
Uma delas é a Guerra dos Jangadeiros, quando em 1881 um homem simplíssimo chamado Dragão do Mar (Francisco José do Nascimento) chefiou os jangadeiros para recusarem a levar escravos para serem comercializados em outras Províncias.
Como que uma história maravilhosa dessas não é super conhecida por todo o mundo???!!! Você conhecia? Eu não.
No Ceará o movimento abolicionista era fortíssimo, e tinha nomes dignos de heróis de filmes como Preta Simoa, Negra Esperança, além do próprio Dragão do Mar. E revolucionou.
Além dos jangadeiros terem inspirado outros movimentos, impulsionaram a abolição gradual nas cidades do estado, começando pela Vila de Aracape, próxima a Fortaleza, que em 1883 foi a primeira a alforriar todos os escravos.
Apesar de ter os mesmos problemas pós abolição que o Maranhão, a verdade é que o Ceará sai na frente e tem muito mérito nisso. Honremos essa história!
Acabou? E as virações?
Tá acabando. Talvez ao chegar até aqui nesse textão você ache tudo isso que estou dizendo uma grande loucura, mas vai ser esse balaio de gatos essa newsletter, porque as conexões da vida são assim também. Só venha nesse fluxo. E pode trazer suas conexões também!
Uma viagem não nos leva apenas a um lugar, mas também à histórias, livros, enredos, heróis.
Uma linda paisagem, uma cidade segura e bonita, tudo isso é maravilhoso. Mas um lugar que abre essa caixa de pandora do conhecimento, que nos leva a reflexões e personagens incríveis: ah!!!! nada é mais valioso!
Curiosamente, em vários momentos do livro, Montello fala das "virações", os ventos que aliviam os calores de São Luis vindos do mar, da noite e do amanhecer e que trazem alívio, mudanças e novas estações.
Eu me apaixonei por essa palavra. Primeiro porque ela é bonita demais e nos diz muito mais que "vento", da mesma forma que o centro histórico de São Luis me disse mais que os bairros modernos.
Segundo porque a viração foi uma das primeiras coisas que identifiquei e amei em São Luis. Naquele calor que deixa a gente melado mesmo quando imóvel vi aquele cão, após o banho, sentadinho na esquina das Rua do Giz e da Feira e reparei que os pelinhos balançavam na brisa que vinha do mar. Ele parecia fresco e feliz.
Sentei diante dele do outro lado da rua e senti aquela brisa me resfriar também. Ela chacoalhava as bandeirinhas, levando o medo que tinha que ir, trazendo o livro que tinha que vir. Aprendi a me deliciar com a viração do fim da tarde como o cão e me tornei também parte daquela cidade.
Viva São Luis do Maranhão e seus acasos!
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Oi Bruna!!!
Esse é o segundo texto que li seu (comecei pelo segundo) e também, igualmente, adorei!!!!!
Como é gostoso esse seu escrever, esses seus devaneios e pensamentos!!
E trazem muito mais que um relato de viagem, nos levam a outros lugares e principalmente, para dentro da gente, repensar valores e arquétipos.
Quem viaja (para fora e para dentro) não consegue se acorrentar a preceitos e preconceitos.
Que lufada de ar!!! Que frescor, toda uma viração esses seus textos!!
Beijos!!!
Marcia
Adorei conhecer São Luis pela sua newsletter☀️